Recaída na Recuperação: Um Recomeço Possível
Para quem vive na pele a dependência química, poucos momentos são tão devastadores quanto uma recaída. Após semanas, meses, ou até anos de sobriedade, o retorno ao uso de substâncias pode parecer um colapso de tudo o que foi construído. É comum que esse momento venha acompanhado de uma avalanche de sentimentos: vergonha, frustração, medo, culpa e desânimo.
Mas dentro dos grupos de recuperação como o Narcóticos Anônimos (NA), essa realidade é encarada de outra forma: a recaída é um sintoma da doença, e não um fracasso pessoal. Ela pode ser uma tragédia, sim — especialmente quando leva à morte. Mas também pode se tornar um ponto de virada, desde que haja honestidade, ação imediata e reconexão com o programa.
A doença da adicção e a ilusão da “cura”
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a dependência química como uma doença crônica e recorrente. Isso significa que ela não desaparece com o tempo. Como o diabetes ou a hipertensão, exige vigilância, tratamento contínuo e uma abordagem multidisciplinar.
Muitos adictos, ao conquistar um período de abstinência, acreditam que estão curados. Sentem-se fortes, confiantes, e começam a abrir mão de rotinas que garantiam sua sobriedade — param de frequentar reuniões, se afastam de seus padrinhos e madrinhas, relaxam com seus limites. Esse é o terreno fértil para a recaída.
Rodrigo, 41 anos: “Com um ano limpo, me senti invencível. Parei de ir nas reuniões. Achei que podia visitar velhos amigos, só pra trocar ideia. Duas semanas depois, estava usando de novo. Achei que tinha destruído tudo. Mas meu padrinho me disse: ‘Você só fracassa quando desiste’. Isso me salvou.”
Recaída: Parte da Doença, Não da Recuperação
Dentro do Narcóticos Anônimos, há uma distinção importante:
“A recaída faz parte da doença, mas não faz parte da recuperação.”
Isso significa que, embora comum, a recaída não é inevitável. E muito menos deve ser banalizada. Ela é vista como o avanço da adicção ativa, e seus efeitos podem ser catastróficos. Cada recaída é um risco: de overdose, prisão, perda de vínculos familiares e até morte.
A OMS, em seu Relatório Mundial sobre Drogas (2023), alerta: recaídas estão entre as maiores causas de morte entre dependentes, principalmente por opioides e estimulantes como cocaína e crack.
Por Que a Recaída Acontece?
Recaídas não acontecem “de repente”. Elas são precedidas por um processo chamado recaída emocional ou comportamental, que pode durar dias ou semanas antes do uso efetivo. Alguns fatores comuns incluem:
- Isolamento social e emocional
- Estresse elevado ou traumas não tratados
- Negligência com o programa
- Autossuficiência perigosa
- Gatilhos ambientais e emocionais
Dra. Nora Volkow, diretora do NIDA: “A recaída não significa que o tratamento falhou, apenas que ele precisa ser ajustado, reforçado e retomado com mais intensidade.”
A Recaída Pode Ser Uma Ponte de Retorno
Juliana, 28 anos: “A vergonha me impedia de voltar ao grupo. Achava que iam me julgar. Mas fui recebida com abraços. Ninguém me perguntou por que recai. Só disseram: ‘Que bom que você voltou’. Hoje tenho dois anos limpos e apadrinho outras mulheres. Recaí, sim. Mas nunca desisti.”
Essa postura de acolhimento é central nos grupos de 12 Passos. Ninguém aponta o dedo. O foco não é o passado, mas o presente.
O Que Fazer Se a Recaída Acontecer?
- Admita o uso o quanto antes
- Volte às reuniões
- Retome os Doze Passos
- Evite racionalizações
- Reforce sua rede de apoio
A Importância do Grupo
Carlos, 36 anos: “A recaída quase me matou. Mas o grupo me trouxe de volta. Aqui, eu aprendi que cair pode acontecer — mas permanecer caído é escolha. Hoje, eu escolho viver.”
Prevenção da Recaída
- Compareça às reuniões regularmente
- Trabalhe os Doze Passos com profundidade
- Compartilhe sentimentos difíceis
- Mantenha contato com padrinho ou madrinha
- Evite gatilhos
- Cuide do corpo e da espiritualidade
AA e NA: Apoio Mútuo e Espiritualidade
O AA também oferece orientação sobre recaídas. No Livro Azul, lemos:
“O primeiro gole foi o que nos derrubou, não o último. Repeti-lo é como testar a mesma armadilha esperando um resultado diferente.”
No NA, folhetos como “Só Por Hoje” e “Viver Limpo” orientam sobre as armadilhas da recaída e o retorno ao programa.
Conclusão: Só Por Hoje, a Vida Continua Disponível
A recaída é perigosa. Mas ela não precisa ser o fim. Com humildade, ajuda e disposição, a recuperação pode recomeçar.
“Só por hoje, escolha viver. Só por hoje, escolha voltar. Só por hoje, escolha continuar.”