A Dor da Abstinência e a Esperança da Recuperação: Meu Relato Pessoal
Durante a minha caminhada como adicto em recuperação, vivi momentos que me marcaram profundamente — e a abstinência foi, sem dúvida, uma das fases mais difíceis de toda essa trajetória. Não era apenas um desconforto físico, mas uma angústia mental, emocional e espiritual. Em alguns momentos, a dor parecia tão insuportável que eu cheguei a pensar que não conseguiria continuar.
Houve um dia específico que ficou gravado na minha memória. Eu estava no meu primeiro emprego limpo, um marco importante na minha recuperação. Tinha recebido meu salário em dinheiro, e era para ser um dia de alegria. Mas quando senti o peso das notas na minha mão, algo se acendeu dentro de mim. A fissura veio como uma avalanche. Me vi tomado por uma vontade desesperadora de usar. Naquele instante, toda a estrutura que eu vinha tentando construir parecia ruir.
Tremendo, ansioso e com o coração disparado, fiz o que aprendi com meus companheiros de Narcóticos Anônimos: pedi ajuda. Liguei para o meu padrinho, e ele não hesitou. Disse para eu me encontrar com ele imediatamente. De lá, ele me levou a um grupo de Alcoólicos Anônimos que estava reunido naquela noite. Eu sou de NA, mas, naquele momento, foi o AA quem me acolheu. Foi aquela reunião, aquele abraço coletivo e aquele espaço seguro que me impediram de jogar todo o meu salário pelo nariz. Aquele dia poderia ter mudado o rumo da minha vida — e graças à irmandade, mudou, sim, para melhor.
O Que Acontece com a Gente Durante a Abstinência?
A abstinência é o grito do corpo e da mente que estavam acostumados à presença constante de uma substância química. Quando tiramos isso de repente, tudo entra em colapso. O cérebro, que havia se adaptado a receber doses regulares de dopamina artificial, passa a funcionar em pane. O sistema nervoso entra em estado de alerta constante. E o que para alguns pode parecer “frescura” ou “falta de força de vontade”, para quem passa por isso é um verdadeiro inferno.
No meu caso, os sintomas vieram em ondas. Algumas previsíveis, outras completamente inesperadas. Sentia calafrios, tremores, náuseas. Era como se tivesse uma gripe muito forte, só que multiplicada por dez. Suava frio e tinha dores no corpo inteiro, principalmente nas pernas e nos ombros. Às vezes, parecia que minha pele estava vibrando, como se estivesse desligando de algo que fazia parte de mim.
Mas, para mim, o mais difícil era o que acontecia na cabeça. A ansiedade era insuportável. Me sentia inquieto, acelerado, como se estivesse prestes a explodir. À noite, não dormia. Quando conseguia fechar os olhos, vinha uma avalanche de pensamentos — alguns me lembrando do prazer que a droga me dava, outros me fazendo acreditar que eu não seria capaz de viver sem ela. Tive ataques de pânico, pensamentos obsessivos, raiva sem motivo, e uma tristeza profunda. A depressão me fazia questionar se valia a pena continuar.
E o pior é que, mesmo sabendo que era só a abstinência falando, a mente não deixava de acreditar naquilo. É por isso que tantas pessoas recaem nesse momento. A gente acha que vai ser eterno. Mas não é. Dói, sim. Dói muito. Mas passa.
Os Riscos Reais e Por Que Buscar Apoio É Fundamental
Felizmente, eu nunca precisei ser internado por causa da abstinência. Mas conheci muitos companheiros que passaram por isso, especialmente os que lidavam com a abstinência do álcool ou de benzodiazepínicos. Eu sei que, nesses casos, os sintomas podem ser perigosos — podem causar convulsões, delírios e até levar à morte, se não houver acompanhamento adequado.
No meu caso, o maior risco era emocional. Era fazer uma besteira no auge da fissura. Era me afastar do grupo e me isolar. Era pegar o dinheiro e desaparecer. E, por isso, saber que eu tinha com quem contar fez toda a diferença. Nunca enfrentei a abstinência sozinho. Sempre tive ao menos um número de telefone para discar. E, se você que está lendo isso está nesse ponto da jornada, entenda: você também não precisa passar por isso sozinho.
Foi isso que me salvou: o apoio da irmandade. Os encontros de NA, os telefonemas, os textos que eu lia nos momentos difíceis. O simples ato de compartilhar minha dor com quem já tinha passado por ela e entender que eu não era louco nem fraco — só estava doente e me curando.
O Que Me Ajudou a Aliviar os Sintomas
Não existe fórmula mágica, e cada corpo reage de uma forma. Mas algumas atitudes me ajudaram a aliviar os sintomas, mesmo sem medicação ou acompanhamento médico.
A primeira coisa foi aceitar que eu estava em abstinência. Não lutar contra a dor, mas reconhecê-la. Dizer a mim mesmo: "é difícil, mas é normal". Isso já aliviava parte do sofrimento.
Eu também me forcei a manter uma rotina mínima. Mesmo sem fome, tentava comer coisas leves, como frutas e sopas. Bebi muita água e água de coco, porque sabia que meu corpo estava se desintoxicando. Evitei cafeína e açúcar, pois percebia que eles me deixavam ainda mais ansioso.
Outra coisa que ajudou foi tomar banhos mornos. Era um momento de pausa, de respirar. E por falar em respiração, técnicas simples como inspirar lentamente pelo nariz e soltar pela boca me ajudaram em muitos momentos de pânico.
Por fim, escrevi muito. Colocava no papel tudo que eu estava sentindo. Às vezes, era só desabafo. Outras vezes, eram textos que depois eu levei para partilhar nas reuniões. E ali, ao ler em voz alta, percebia que aquela dor também era de outros. E isso aliviava mais do que qualquer remédio.
O Valor dos Grupos de Apoio na Superação
Já falei aqui da importância de NA e AA na minha vida, mas preciso reforçar: foram eles que me mantiveram de pé nos piores momentos. Na abstinência, especialmente no início, é muito difícil confiar em si mesmo. A cabeça mente. A fissura grita. O corpo pede a droga de volta. E a gente se sente pequeno, vulnerável, sozinho.
Mas quando eu entrava em uma sala e ouvia alguém dizendo que estava limpo há dois dias, ou dois meses, ou vinte anos, eu me reconhecia ali. Quando contava meu desespero e via alguém acenando com a cabeça em compreensão, isso me dava força.
Tive medo de ir às reuniões no começo. Achava que iam me julgar, que eu não era "bom o suficiente". Mas foi justamente lá que descobri que não precisava ser nada além de honesto e disposto. Porque ali ninguém é melhor do que ninguém. Somos todos iguais na dor e na esperança.
Hoje Estou Limpo — e Grato por Não Ter Desistido
Olho para trás hoje, com 28 anos limpo, e vejo o quanto essa travessia valeu a pena. Não foi rápida, nem fácil, nem linear. A abstinência me testou como poucas coisas na vida. Mas ela passou. E cada dia que vivi sem usar, mesmo com dor, foi um passo em direção à liberdade que eu tanto buscava.
Hoje tenho uma vida que jamais teria se tivesse cedido à fissura naquele dia de pagamento. E sou imensamente grato por ter ligado para meu padrinho, por ter ido naquela reunião do AA, por não ter me escondido. Porque o que me salvou não foi força de vontade — foi conexão. Foi pedir ajuda e aceitá-la.
A abstinência dói. É cruel. É injusta. Mas ela passa. E o que fica é algo muito maior: a chance de recomeçar.
Referências Científicas
- National Institute on Drug Abuse (NIDA)
- American Society of Addiction Medicine (ASAM)
- National Library of Medicine - PMC6761825
- Journal of Substance Abuse Treatment